terça-feira, 3 de maio de 2016

Capítulo 8: Relações de poder - Parte 2-

Quando as coisas viraram um inferno, Piratini era uma típica pequena cidade do interior gaúcho. Seus quase 250 anos de história não refletiam o cenário encontrado pelos refugiados que chegaram em grande parte com a comitiva que trazia o governador. Um cronista que acompanhou a viagem desde as primeiras horas após a destruição de Porto Alegre até Piratini comparou o evento da fuga até a chegada em terras com promessa de um novo começo com a chegada da Família Real ao Brasil em 1808.

Tirando esse exagero que alguns julgaram o cronista, Piratini sempre teve ares de importância história para os gaúchos. Ali fora a grande capital dos rebeldes da Revolução Farroupilha, foi também palco de eventos trágico como o surto de uma variante da gripe que dizimou 15% da população local em 2024 e que levou a cidade ao quase desaparecimento depois disso. Dos vinte mil moradores que a cidade possuía na primeira década dos anos 2000, em 2038, menos de quatro mil moradores viviam lá.

No primeiro dia após o ocorrido, a população local descobrira que o prefeito da cidade havia fugido com sua família em direção ao sul do Estado. A situação só não virou anárquica pela chegada de um batalhão do exército que se encontrava fora de Santa Maria que chegou dois dias depois e colocou as coisas em funcionamento esperando a chegada da maior parte da comitiva que saiu das ruínas de Porto Alegre.

Os moradores locais ficaram curiosos, quando começaram a chegar políticos, cientistas, membros da alta sociedade gaúcha e habilidosos profissionais das mais diversas áreas com suas famílias. Parecia milagre como o padre local descrevera quando as antigas casas em abandono de seus antigos donos foram preenchidas com pessoas ocupadas dos mais diversos ofícios, quando o antigo hospital começara a ser expandido e uma série de comércios e negócios surgiu da noite para o dia nas antigas ruas históricas de Piratini.

Quando o então governador chegou, a população local aplaudia e festejava não somente a sua chegada, mas sim um recomeço feliz no meio da tragédia. A bandeira do Brasil e do Rio Grande do Sul subiam enquanto os hinos foram tocados. A missa que era sempre realizada na Igreja Matriz foi realizada em frente ao antigo Palácio do Governo Farroupilha que fora escolhido para abrigar novamente a sede do governo estadual e futuramente da República Piratini.

Os jornais locais e a população que vibraram com a revitalização e as novas obras que surgiram da noite para o dia em Piratini, perceberam que não seria tão doce e suave essa nova realidade. Nas principais ruas, a população fora despejadas de suas casas e realocadas em outras que estavam abandonadas há anos. Algumas construções tiveram de ser demolidas para ampliações de outras, como ocorreu com a expansão do Palácio Farroupilha, que gerou protestos aos atingidos.

Mas tudo isso era necessário para o melhor funcionamento e expansão da qualidade de vida de todos os moradores da cidade, diziam as autoridades sempre falando pelo governador que depois das primeiras semanas era pouco visto, abatido e em estado de choque depois de toda a jornada até aqui e das mudanças que em poucas semanas ocorrera em sua vida. Muitos criticavam sua omissão, mas depois de alguns dias de repouso e tratamento voltou a ser visto muitas vezes ajudando nas obras da cidade ou em visita ao asilo, na escola ou no hospital que funcionavam parcialmente.

“Sempre em frente, leal e valorosa Piratini”, era o novo lema da cidade que atraiu logo após os primeiros meses um sem número de pessoas que buscavam tranquilidade, segurança e uma nova chance de sobreviver nesses tempos caóticos. Com os serviços básicos acima da capacidade, algumas medidas autoritárias foram sendo executadas. As ruas mais distantes do centro tiveram o fornecimento de energia elétrica e água cortados para manter o centro em funcionamento, cercas e muros foram erguidos criando divisões entre os bairros dentro da cidade e outras dela, criando uma limitação de novas construções num raio de 3 km da cidade.

Nesses dez anos de Piratini como capital, a cidade experimentava um som multicultura que crescera fora de seus limites originais e dos muros de segurança da cidade principal. Ao redor da cidade, depois das cercas de segurança que rodeavam a área da cidade, quatro povoações surgiram criando uma dinâmica diferente da vida agitada com seus problemas políticos e burocráticos que uma capital tinha. Ao todo em 2048, 9.562 pessoas habitam a área que seria a capital Piratini e seus distritos urbanos. Contanto os quatro povoados e alguns grupos agrícolas que viviam no máximo a 10 km da cidade, a população total era de 21.350 moradores.

Piratini cresceu e pode legitimar sua hegemonia no cenário do Rio Grande do Sul pós-apocalipse. As maiorias das cidades mais próximas acabaram por reconhecer os domínios de Piratini sem resistência e estas receberam o contingente populacional excedente da capital sem maiores problemas, e com estes investimentos e forças de defesa, acabaram por quase zerar o banditismo de grupos errantes na região.

Mas nem tudo foi calmo nessa luta por hegemonia de Piratini. Nesses dez anos, algumas cidades foram submetidas pela força, outras ainda resistem as tentativas, como a Cidade Livre de Santo Ângelo, o Reino de Vacaria e a República do Alegrete. A Cidade Livre de Santo Ângelo é um caso especial dentro dessas áreas ainda resistentes ao avanço de Piratini, mesmo com a destruição de Ijuí, Santa Rosa e São Borja, ela pode crescer e espalhar sua influência local dominando áreas que Piratini também considera suas.

Enquanto as rebeldes cidades ainda tentam sobreviver ao inevitável avanço de Piratini, a Capital trabalha em solução de outros problemas. Os problemas elétricos foram eliminados em toda a região próxima da Capital com a construção de painéis solares e da energia eólica. Ruas dentro de Piratini e as estradas que dão acesso a cidade foram recuperadas, os campos voltaram a produzir alimentos necessários a população e o racionamento de carne é agora lembrança do passado.


Piratini prospera trazendo pessoas de todo o Rio Grande do Sul e até de grupos oriundos das fronteiras do Uruguai e da Argentina, procurando paz e estabilidade. A OIPNOM também enviou alguns olheiros oriundos da sua base nos subsolos da antiga Porto Alegre, para vigiar, coletar dados e informações. Alguns boatos sugerem que algo grande irá acontecer na nova Capital, mas até lá as luzes de Piratini não serão apagadas.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Capítulo 8: Relações de poder - Parte 1-

Piratini, Capital Federal, dez de maio de 2048

-Por favor, Senhor Presidente, fique mais alguns minutos nessa posição. - comentou o pintor enquanto olhava para o quadro e para Arthur, escolhendo o próximo tom de cor na sua palheta.

Os dias estiveram calmos em Piratini desde as ultimas prisões de pessoas suspeitas de pertencerem a OIPNOM, há pouco mais de um mês. Três suspeitos foram encontrados em suas casas com plantas de prédios governamentais e grande quantia de explosivos, além de acusados de espalhar boatos que estes estavam inflamando a população de fora dos muro das cidade a se revoltarem contra o governo.

Arthur Biancchinni respirava impaciente, incomodado com a posição que escolhera para ser eternizado no quadro. Se pudesse escolher novamente, escolheria uma posição onde pudesse ficar sentado e não uma onde em pé segurava a constituição da República, vestindo a roupa padrão dos governadores do Estado e a faixa tricolor representado as cores da nação.

-Se me pe-pe-permite Senhor Presidente- gaguejou o pintor,- gostaria de adicionar na pintura alguns elementos da cultura gaúcha no fundo do quadro.-.

-Sou a favor dessa ideia, Antônio- comentou Arthur enquanto observava a sua pose no reflexo de um grande espelho que cobria uma das paredes do cômodo, - mas creio que antes devemos escolher esses símbolos. Afinal somos nós, sobreviventes que moldaremos esse novo futuro, certo? -

O pintor concordou com a cabeça e continuou a pintura. Depois de alguns minutos, o artista resolveu dar uma retocada em alguns pontos já prontos do quadro e liberou o Presidente.

Arthur saiu apressadamente do cômodo, alongando os braços saiu em direção ao gabinete presidencial. Passou por dúzias de funcionários públicos, alguns membros do alto escalão do exército e um ou outro membro da elite econômica da Capital. Todos tentavam cumprimentar o Presidente, que raramente saia de seu gabinete ou da sala de reuniões. Havia muito que fazer ainda para a vida a voltar ao normal.

Chegando próximo do seu gabinete, um secretário correu em sua direção.

-Senhor Presidente!-

-Senhor Presidente!-

Arthur parou a cerca de 5 metros de seu gabinete, onde os dois guardas já haviam aberto a porta para a sua entrada.

-Senhor Presidente!-

O secretário, era um jovem de vinte e poucos anos, sendo filho de um dos grandes donos de estâncias da região, foi uma forma de agradecimento do Presidente pelos serviços prestados pelo seu pai na época da transferência da capital para Piratini.

-Vamos lá filho- disse o Presidente, - meu tempo está curtíssimo hoje. –

-Por isso mesmo Senhor Presidente. Você tem uma visita não agendada lhe esperando dentro do seu gabinete. -.

-Mas quem é que pensa que pode entrar aqui, sem agendamento ou convite?- Respondeu indignado Arthur

-E vocês guardas, porque não barraram a entrada?- Antes de dizer mais algumas palavras, ele observou a figura próxima à janela dentro do gabinete presidencial e reconheceu quem era. Respirou fundo, e adentrou dentro do gabinete. Sem esperar pelo movimento dos guardas, eles mesmo fechou a porta.

-É uma joia rara essa cidade, não é mesmo? De todas as novas capitais, creio que só Petrópolis seja mais organizada que Piratini. - falou o senhor de chapéu que observava pela janela o movimento na rua central da capital.

-Temos ainda muito que fazer, praticamente recomeçamos do zero, Jorge.- Observou Arthur.

-Não, na verdade teriam recomeçado do zero se não tivessem me ouvido semanas antes de tudo acontecer. Ai sim estariam tão perdidos e fragmentados quanto o resto do Brasil.- retrucou o senhor que acabara de tirar o chapéu e o colocou sobre uma escrivaninha.

Uma troca de sorrisos e logo após um abraço de dois amigos que não se viam a muito tempo. O senhor de chapéu era um antigo Coronel aposentado do exército que quando percebeu que as ameaças do apocalipse eram verdadeiras, preparou um plano de evacuação nas principais cidades brasileiras e de armazenamento de recursos materiais necessários para a construção de fortalezas capazes de proteger os sobreviventes, e de pessoas consideradas indispensáveis para tirar o Brasil rapidamente da idade das trevas que surgiria após o holocausto nuclear.

Todos consideraram os planos do Coronel uma piada de péssimo gosto, um plano megalomaníaco sem qualquer capacidade de dar certo. O Presidente do Brasil nunca se importou em ler os planos de contingência, mas alguns membros do alto escalão vazaram os documentos e um destes chegou às mãos do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Luiz Eduardo Gomes.

Quando o dia chegou, o velho Coronel Jorge Fonseca encontrou o atordoado novo Governador Arthur Biancchinni em Sapiranga e comunicou de todos os planos que foram secretamente começados duas semanas antes das bombas caírem. Cerca de 5 mil pessoas foram transferidas para Piratini, além de toneladas de alimentos e uma grande quantidade de armas, combustíveis e de materiais de construção.

-Já se passaram quase seis anos desde a sua última visita, Coronel. Muita coisa mudou como eu creio que já deve ter visto no seu caminho até aqui. –

-Sim, meu caro Presidente- Arthur percebeu o tom irônico quando o coronel pronunciou a palavra Presidente. –mas vim aqui representando um poder maior. Nessas minhas caminhadas por todo o Brasil, vi centenas de comunidades prosperando em terras desoladas, e algumas haviam saído já da sobrevivência básica e já haviam partido para a expansão. -

-O sudeste brasileiro está convulsionando em batalhas campais entre as maiores cidades e seus vassalos, e estas, às vezes se unem quando o inimigo é maior.

-Nesse caso, seria a OIPNOM?- questionou Arthur.

-Geralmente sim, Arthur,- respondeu o coronel – mas também vale quando o se fala do Império. Tive oportunidade de viver um tempo na corte em Petrópolis, e o que as auto proclamadas Oito Repúblicas reconhecem, é que o Império tem os maiores recursos militares que sobreviveram do apocalipse. O que falta para nós é um maior número de pessoas.

-Os conflitos começaram recentemente com trocas de acusações de espionagem e sabotagens, mas nada oficialmente comprovado. Mas alguns observadores leais ao Imperador o alertaram que movimentos da OIPNOM foram confirmados por toda a cidade de Rio de Janeiro, e que ironicamente alguns dias após isso, começaram as sabotagens e pequenos delitos por toda a região.

Arthur ouvia atentamente as palavras proferidas por Jorge. Não haviam muitas informações de fora que pudesse ser dignas de oficiais ou que parecessem como tais, geralmente vinham com os comerciantes e contadores de história, em forma de histórias que alguém contou para outro, que contou para outro e assim por diante.

Arthur sentou-se em sua cadeira e acendeu um charuto.

-Quer um charuto Coronel?- perguntou Arthur estendendo-lhe um charuto.

Jorge simplesmente ignorou a oferta e esperou o Governador guardar o charuto de volta na sua escrivaninha.

-Onde eu estava mesmo?- questionou-se o Coronel. -Me lembrei- suspirou.

-O Imperador então mandou seus diplomatas para as maiores nações vizinhas para alertá-los dessa movimentação, para que todos reforcem seus esquemas de segurança e que possam logo, formar uma agenda de debatas para resolver a questão da OIPNOM de uma vez por todas.

-E eu, com o conhecimento que tenho do Governo Provisório Rio-Grandense, me ofereci para ser o porta voz do imperador para com você como representante geral do povo gaúcho. É bem simples. Trouxe alguns documentos com informações que você pode lê-los e decidir depois se são verdades ou mentiras.

Arthur olhava desconfiado para o Coronel que aguardava pacientemente por algumas palavras ou gestos de aceite da proposta.

Ele levantou-se da cadeira e andou em direção a grande janela de seu escritório. A rua de frente estava movimentada por todo tipo de gente, o som de inúmeras vozes e das buzinas das charretes e do relinchar dos cavalos. Tudo o que fora construído, tudo que fora preservado poderia simplesmente ser mantido ou destruído, dependendo se ele lesse ou não esses documentos.


O Presidente da República não disse nada. Caminhou em direção ao Coronel e estendeu-lhe a mão. Era um caminho sem volta. Essa ajuda de bom grado do Império estava altruísta demais para ele, mas não poderia recusar. A partir desse ponto, as coisas seriam diferentes para Arthur Biancchinni e para toda Piratini.


sexta-feira, 4 de março de 2016

Capítulo 7: Lembranças - Parte 3-

Paloma tentava lembrar-se do que acontecera. Estava deitada numa canoa parcialmente queimada. Sua cabeça doía e um zumbido lhe impedia de ouvir qualquer outra coisa.

- Papai?- tentou gritar Paloma, mas sua garganta estava tão ardida e seca que as palavras saíram quase como um sussurro.

A água do rio batera mais uma vez com força na canoa que encalhara nas margens do antigo porto. A vibração da água e da canoa acordaram de vez Paloma, que assustada tentava se levantar. Meio zonza, ela se apoiou na canoa para tentar sair. Na primeira vez, caiu novamente dentro da barco, na segunda vez se impulsionou para fora e caiu novamente, mas desta vez em terra firme.

Sentou-se na beira do rio e bebeu um pouco de água, esperando que isso aliviasse a sua dor de garganta, mas a sensação de ardência continuava. As estrelas brilhavam naquela noite e a Lua que estava na fase cheia, era refletida pelo rio que calmamente seguia seu curso. A sua cabeça ainda doía um pouco, mas a sensação de tontura passara.

Levantou-se vagorosamente e olhou para uma antiga placa que estava próxima. Primeiramente não acreditou no que leu, mas após ler novamente, estava claro. Na placa estava escrito: “Seguir as normas de transporte aquático salvam vidas! Qualquer dúvida procure o posto mais próximo da Marinha do Brasil.”

-Estou no Brasil!- concluiu Paloma. Olhou para o horizonte em busca do porto que ficava do lado argentino, mas só conseguia ver fumaça e fogo. O pânico tomou conta de Paloma.

-Juan! Jose!- tentou novamente gritar, mas foi em vão. Paloma estava pela primeira vez em sua vida sozinha.

Ela perdera a noção do tempo e acabou por adormecer próxima a canoa. O sono foi cheio de pesadelos e sentimentos ruins. Uma leve cutucada a fez acordar assustada. Um senhor de meia idade calmamente esperava o seu despertar apoiando-se na sua velha bengala.

- Bom dia menina.- disse docemente o senhor. –Você parece perdida, não? Está com fome?-

A palavra fome lhe despertou uma forte dor no estomago. Estava faminta. Paloma sem dizer nada somente gesticulou com a cabeça um sim. Com um sorriso, o senhor lhe estendeu uma mão. Subiram lentamente o morro que separava o porto da pequena vila.

Paloma olhou uma última vez para traz, além do rio, para a pequena vila do lado argentino. A vila havia sido reduzida a fumaça e escombros.

A cidade de Porto Mauá, antes das bombas tinha uma população de menos de três mil habitantes, que viviam da agricultura e da pesca, além de uma parcela da população ser composta por funcionários públicos que trabalhavam no tráfego e na fiscalização na ponte que unia a Argentina e o Brasil.

Embora parecesse abandonada, a cidade possuía alguns moradores que viviam nas casas mais próximas das áreas de plantio do que na beira do rio, pois enchentes eram recorrentes e algumas delas o rio chegava a subir mais de vinte metros, inundando as ruas centrais da vila.

Na rua central existiam indícios ainda de uma inundação recente. A sujeira e o lodo cobriam grande parte do asfalto. Alguns carros estavam tombados e outros haviam sido arremessados pela força da enchente em casas e estabelecimentos. Porcos e vacas vagavam pela rua em busca de alimento.

O senhor que se apresentou como Deodoro vivia próximo à ponte que uma vez unira as duas maiores nações da América do Sul. Era engenheiro e trabalhou no projeto da construção da ponte. Na época, trocou a agitação de Porto Alegre por essa cidadezinha para aproveitar a sua aposentaria que nunca chegou.

Deodoro nunca teve desejou ter filhos nesses seus 50 anos de existência, mas depois dos 40 anos sempre pensar em adotar. Para ele o mundo estava conturbado e cheio de pessoas e conflitos, para que ter mais pessoas sofrendo nesse mundo?

-Chegamos, mocinha.- disse educadamente Deodoro, tirando a sua boina que escondia o seu cabelo grisalho. – Mas antes de estramos, quero saber seu nome.-. Depois que ele parou de rir, envergonhadamente, ela respondeu.

-Meu... nome Paloma.-

-Muito prazer senhorita Paloma.- falou Deodoro cumprimentando novamente Paloma. – Entre menina, vamos! João já deve ter servido o café da manhã.-.

A casa térrea era espaçosa e bem iluminada com grandes janelas de vidros que davam a sensação de uma casa bem confortável. Na sala de estar, a televisão servia como uma central de monitoramento, com câmeras que vigiavam os arredores da propriedade. Da cozinha vinha um cheiro delicioso de pão quentinho.

-Espere aqui menina.- sussurrou gentilmente Deodoro enquanto se dirigia a cozinha. Paloma deu algumas voltas pela sala observando alguns quadros e pinturas que estavam pendurados na parede. 

No canto esquerdo da sala um pano cobria um piano que parecia que a muito tempo ninguém tocava.
Paloma tomou um susto quando a porta de cozinha voltou a abrir. De lá saiu o João. Diferentemente de Deodoro, ele era alto e seu cabelo não era totalmente grisalho. Deveria possuir mais ou menos a mesma idade que Deodoro.

-Então você é Paloma?- observou João meio desconfiado. –Venha para a mesa! O café está servido. -

- Pos-pos posso lavar minhas mãos antes? Perguntou Paloma

-Primeira porta depois do corredor. - respondeu João apontou em direção próxima ao piano.

Ao adentrar no corredor, as luzes automaticamente foram acessas. A porta do banheiro estava entreaberta e quando ela entrou a luz do banheiro também acendeu.

Olhou-se no espelho, seu cabelo ruivo estava desarrumado com pequenas folhas presas nele. Seu rosto embora doesse da noite passada, não tinha sinais de corte, apenas de fuligem e sujeira. Lavou suas mãos igualmente sujas e o seu rosto rapidamente.

-Vamos lá Paloma, você consegue falar português. Eles foram gentis com você! Talvez saibam o que aconteceu... –

Ela havia aprendido um pouco de língua portuguesa na escola, até que as bombas caíram e a sociedade entrasse em colapso. Seria difícil, pois até o presente momento ele deveria ter conversado em português uma ou duas vezes somente fora da escola. 

Secou o seu rosto e voltou para cozinha, onde João e Deodoro já haviam começado a comer o desjejum.

-Vamos menina, sente-se!-

Paloma sentou-se e pegou uma fatia de pão e colocou no seu prato. Próximo dela havia um pote com uma geleia que parecia ser de uva ou amora. Passou a geleia no seu pão e começou a comer lentamente.

-Então... Paloma- começou Deodoro a falar, - o que traz você para essa linda e desolada terra chamada Brasil? – rindo um pouco da sua própria fala, serviu um copo de suco de laranja num copo e ofereceu para ela.

Bebendo quase todo o copo, Paloma respirou fundo, a sensação do suco descendo em sua garganta e matando a sua sede era maravilhosa. A geleia que era de uva estava soberba e o pão ainda estava quente, indicando que havia saído a pouco do forno. Eles pareciam ser boas pessoas. Deodoro convidou-a para ir a sua casa sem pensar duas vezes, mesmo João que era mais reservado lhe passava uma sensação de segurança.

Sem pensar duas vezes, Paloma calmamente contou a história da sua vida. Misturando nas frases palavras em português e em espanhol, falou de sua família antes do apocalipse, dos momentos que fugiram até chegar em Oberá, dos momentos de terror que viviam ali até a fuga da cidade e a chegada na fronteira ainda do lado argentino. Sobre como chegou até o lado brasileiro ou do incêndio do outro lado ela não se lembrava de nada.

João deu um abraço em Paloma e Deodoro pegou em suas mãos. Ela começou a chorar na presença dos dois estranhos que entraram em sua vida. Depois do café, Deodoro achou algumas roupas e ofereceu para que Paloma pudesse tomar um banho.

-Não se preocupe menina- disse Deodoro apontando para o chuveiro do banheiro – pode demorar o quanto quiser. –

Enquanto a agua do chuveiro descia rapidamente sobre o seu corpo, seus pensamentos estavam em seu pai e nos seus irmãos. Onde estavam? Estariam bem? Se estivessem bem, porque teriam deixado ela sozinha?

Demorou mais de trinta minutos no chuveiro. Vestiu a calça jeans masculina e a camiseta xadrez cinza que pelo tamanho deveria pertencer a João.

Ao abrir a porta do banheiro, ouviu sons que pareciam ser do piano. Entrando na sala apoiou-se na parede e observou João tocando uma melodia que era familiar para Paloma.

-Gosta de música clássica, menina? -

-Nunca fui uma apreciadora, mas elas me relaxam. –

Ele parou de tocar. Olhou mais atentamente para Paloma e observou como as roupas ficaram nela.

-Você está linda com essa roupa. Tem bom gosto. –

Paloma começou a rir.

-Sabe Paloma, que esse piano eu ganhei de presente de Deodoro? Era o nosso aniversário de 10 anos de casado e ele sabia que há muito tempo atrás eu tocava piano. E então um dia ele me levou para um jantar numa barco no meio do rio e quando voltamos o piano estava aqui na sala. –

-Que lindo. - Respondeu amorosamente Paloma.

-Sim – concluiu João com um sorriso – o melhor dia da minha vida. –

Ele levantou-se e levou Paloma para conhecer o resto da casa. A casa era composta por mais dois quartos e uma garagem. Indo para fora de casa, havia vários painéis solares no telhado e uma grande cisterna subterrânea que armazenava água. Atrás da casa, algumas plantações e um enorme galpão continha algumas vacas e dois cavalos.

Logo depois de voltarem para dentro da casa, Deodoro chegou a casa. Ele trazia consigo algumas frutas e peixe que trocara por parte do leite que suas vacas produziam naquele dia.
Era meia tarde e ela resolvera dar uma volta para conhecer melhor as redondezas. Vagueou por algumas casas abandonadas, olhou por vitrines vazias, cujas lojas foram saqueadas ou que a própria enchente levara todas as mercadorias. Antes de voltar para casa resolvera olhar a antiga ponte mais de perto.

Na estrada que levava ao pátio de espera para cruzar a fronteira, dezenas de veículos encontravam-se abandonados, cujo seus donos provavelmente preferiram cruzar a ponte a pé enquanto os guardas dos dois lados inutilmente tentavam impedir esperando por alguma resposta emergencial de seus governos que nunca chegou.

Em alguns carros ainda era possível observar malas e objetos deixados para trás. Paloma tinha apenas doze anos quando as bombas caíram, mas lembra de algumas noticias que ouvira falando sobre a falta de informação em embaixadas e posto de fronteira deixaram as coisas mais caóticas. Avançando em direção a entrada da ponte, entrou com cautela na ponte, lendo as inúmeras placas com informações em espanhol, português e inglês.

Andou apenas 20 metros sobre a ponte até encontrar o ponto onde ela havia entrado em colapso com a explosão feita pelos moradores das redondezas. Perto do fim da ponte sentou-se em uma motocicleta. A moto embora sofrida com a ação do tempo, ainda estava firme, apoiada pelo pé. Levantou-se da moto para pegar um capacete sem viseira que estava próximo e sentou-se novamente.

Colocando suas mãos no guidão da motocicleta, e imaginou por algum tempo que pilotava a moto, dirigindo pelas terras desoladas da América do Sul. Alguns gritos no rio despertaram-lhe da sua fantasia continental. Alguns pescadores estavam terminando mais um dia de trabalho, e os gritos eram apenas algumas palavras proferidas por eles.

Nisso Paloma percebera que já haviam se passado algumas horas desde que resolvera passear e o sol já estava se pondo. Permitiu-se ficar mais um pouco e observar as misturas de cores que o céu trazia somente nesse horário. O firmamento estava ricamente colorido, conforme tons de laranja, o vermelho e o rosa se misturavam ainda mais com o sol se despedindo no horizonte, trazendo mais uma noite.

Ao chegar a casa, encontrou Deodoro e João assistindo alguns filmes antigos. Eram filmes caseiros que os dois filmaram de suas viagens pelo Brasil e pelo exterior. As risadas preencheram o ambiente, onde os dois contavam algumas histórias que aconteceram nessas viagens para Paloma.

Alguns dias haviam se passado e Paloma não conseguia se lembrar de o que acontecera naquela noite em que acordara do lado brasileiro. Toda vez que se lembrava de sua família, um misto de sentimentos, de impotência, de solidão e medo invadiam sua mente e seu corpo. Tentava manter esse pensamento longe, ajudando os seus dois benfeitores nas tarefas da propriedade, embora nunca tenham conversado diretamente sobre morar permanentemente com eles, fora ficando e sendo aceita na vida deles.

Paloma acreditava em destino, sorte e carma. Quem sabe fora o destino que lhe trouxe um encontro inesperado perto do antigo porto naquele dia 16 de fevereiro.

Depois de ajudar a tirar os animais do galpão, Paloma resolveu dar uma volta até o porto para olhar em direção ao local que vira a última vez sua família. Nenhum sinal de reconstrução ou de limpeza ocorreu no local onde o incêndio havia destruído toda a pequena vila argentina.

Sentou-se em uma pedra na beira do rio, seus pés sentiam a agua gelada que corria rapidamente em direção ao sul. O céu estava limpo e o sol já iluminava todo o céu. O vento que embora fosse fraco, mas constante, as vezes abafava o som das águas e das aves.

Paloma ouviu alguns passos vindos em sua direção. Era um dos moradores das redondezas que carregava o seu equipamento para mais um dia de pesca. Era um homem moreno, usando um chapéu de palha para se proteger do sol, e deveria ter mais ou menos com 30 anos, deduziu Paloma.

O homem estava conferindo o seu equipamento de pesca e proferiu algumas palavras ofensivas para si em espanhol, quando percebeu que havia esquecido alguns anzóis.

-Você fala bem espanhol- disse Paloma em castelhano, segurando algumas risadas.

O homem ficou envergonhado a perceber que ela havia entendido as palavras ditas por ele.

-É meu idioma nativo. Vivi minha vida inteira em Mercedes até tudo começar a desandar. Vim para o Brasil pela ponte, anos antes deles explodirem ela. -

-Desculpe pelas palavras feias de antes menina, - continuou o homem, - meus filhos ficam usando meus equipamentos, mas nunca colocam de volta no lugar.

Paloma riu. Continuou conversando com ele por alguns minutos. Murilo tinha dois filhos, e ele e sua esposa geriam uma casa de passagem para viajantes que precisavam passar a noite em um lugar seguro.

-Esses dias, uns grupos de sete pessoas chegaram com presa lá em casa, - comentou Murilo – estavam com alguns ferimentos, um senhor estava em estado mais grave. Queriam partir mais um homem que estava com o grupo os convenceu que passar uma noite tranquila seria melhor para todos. –

Paloma ficou pensativa. -Poderia ser sua família e outros sobreviventes que foram procurar ajudar? Teriam deixado ela para no porto para ser buscada depois e como acabou indo embora seus irmãos não lhe acharam? -

-Como eram essas pessoas? – perguntou esperançosamente Paloma. Antes de Murilo responder, ela descreveu os seus irmãos e seu pai, acreditando que pudessem ser eles.

Murilo pensou um pouco.

-Não irei te dar falsas esperanças, mas de todos que você descreveu, um parecia ser como você descreveu. Jovem, uns vinte e poucos anos, moreno e olhos verdes. Quem seria esse? – perguntou Murilo curioso.

-Juan, meu irmão. – Disse Paloma.

-Sabe para onde eles estavam indo?- perguntou.

–Podem não estar muito longe. – pensou Paloma.

-Eles estavam procurando algum lugar para curar os ferimentos do senhor que estava com eles. Aqui não temos médicos, então minha esposa sugeriu alguns lugares maiores que poderiam ter alguém que pudesse ajudar. Talvez Tucunduva, Três de Maio ou Horizontina, mas não tenho certeza para onde poderiam ter ido. -

Sem dizer adeus a Deodoro e João, saindo somente com a roupa do corpo e uma garrafa d’água, Paloma partiu. Seguindo por rotas abandonadas e como guia somente as placas e alguma informação ou outra que conseguia por moradores ou por viajantes que cruzavam as rotas.

Caminhou durante dias, o sol castigava, mas evitava andar a noite, preferindo se esconder em alguns carros ou construções abandonadas por medo de possíveis malfeitores percorrendo as estradas. Sem comida e pouca água que às vezes encontrava em riachos ou poças, sua saúde ficou frágil.

Era começo da noite de 27 de fevereiro quando chegou ao portão da cidade. Naquele dia Fernando estava na vigia quando percebeu duas fracas batidas. Resolveu verificar por uma pequena janela para ver quem era. Paloma havia desmaiado, estava fraca demais para continuar de pé.

Fernando então a carregou até a enfermaria que ficava ao lado da delegacia. Lá Beatriz e ele acomodaram como melhor podia Paloma, enquanto esperavam o seu pai buscar o médico que estava em Três de Maio.

Nos dois dias que ela ficou adormecida, Fernando e Beatriz se revezaram em seus cuidados, que embora não fossem nada graves, exigia acompanhamento. Era o primeiro dia de março quando Paloma acordou.

Fernando estava lendo numa poltrona que ficava próxima a porta do quarto onde ela estava deitada. Ao perceber que ela havia acordado, ele saiu rapidamente do cômodo, alguns minutos depois ele apareceu novamente com um copo d'água, do qual Paloma bebeu rapidamente.

-Qual o seu nome?- perguntou timidamente Fernando.

-Paloma- disse ela risonhamente.

Eles conversaram um pouco. Antes de acabar seu turno, Fernando trouxe uma rosa para Paloma e disse:

-Bem vinda a Horizontina. Espero que encontres o que procura. –


terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Capítulo 7: Lembranças - Parte 2-

Horizontina, 1º de maio de 2048

No mundo antigo, diga-se de passagem, antes do apocalipse, o dia primeiro do mês de maio comemorava-se o dia internacional do trabalhador. Essa data raramente é lembrada nos dias atuais. Horizontina deveria ser um dos poucos lugares onde a ideia de descanso nessa data ainda era lembrada.

Fernando havia saído antes de o sol nascer, tinha ido ajudar seu pai em alguma tarefa. Paloma estava sozinha, e diferentemente do que Fernando achava, ela gostava de ficar sozinha. Nessas horas onde o barulho cessava, a cabeça dela funcionava a pleno vapor. As flores que decoravam a mesa haviam sido colhidas de um dos inúmeros jardins abandonados pela cidade.

As flores davam um toque de alegria e perfumavam naturalmente o ambiente, o perfume das flores faziam Paloma se lembrar dos tempos que era criança, no interior da província de Entre Rios, na Argentina. 

As flores que perfumavam sua infância haviam sido murchadas naquele fatídico dia em 2038. Depois disso até o começo de 2044, as flores não pareciam que voltariam a nascer na sua vida.
Foi até o quarto e pegou um pote plástico que guardava algumas fotografias de seus pais e irmãos. No fundo do pote, um pequeno saco plástico transparente continha uma velha flor já desbotada. Havia ganhando do Fernando no primeiro dia de março de 2044. Fora um gesto ingênuo dele, mas a partir daquele dia sua vida e a dele mudaram.

Se não tivesse perdido tudo naquele mês de fevereiro, talvez a sua vida fosse completamente diferente.

Mas então, naquele fevereiro agitado, tudo mudou.
            
Oberá, 2 de fevereiro de 2044.

- Sem armas a partir daqui, seus argentinos sujos!- gritou um miliciano próximo em espanhol.
Paloma estava com seus dois irmãos mais velhos Estevan e José esperando seu pai voltar da fila do armazém. Embora Oberá fosse uma cidade da antiga Argentina, um grupo de brasileiros havia feito o caminho inverso de muitos hermanos que fugiram para o Brasil. Na cidade de Oberá e seus arredores, Bento Santos criou seu próprio feudo e dominava a cidade a mãos de ferro.

Estevan entregou a arma de caça que ele possuía e começou a conversar em português com o soldado que ficava próximo do portão de um antigo supermercado. Estevan era de um tempo anterior das políticas de integração linguística dentro dos países sul-americanos. Dificilmente uma criança nascida posteriormente a 2025 não sabia falar as duas principais línguas do bloco. A população mais velha se arranjava no bom e velho portunhol.

A população em sua maioria argentina sofria com escassez de alimentos e eram cidadãos de segunda classe se comparado com uma minoria de brasileiros residentes no local. As melhores armas e os armazéns estavam nas mãos dos brasileiros. Antes do apocalipse quando se falava em rivalidade Brasil e Argentina eram evidentes nos campos de futebol, clássicos mundiais. Hoje a rivalidade havia se misturado com o ódio. Os dois eram latentes e por demais perigosos.

Entre palavras em português e espanhol, Estevan perguntou ao soldado o motivo da demora da fila que parecia não se mexer. Antes de perceber o soldado empurro-o e disse somente a palavra “tumulto”.

Paloma havia completado seus 18 anos a alguns dias e de presente seu pai lhe prometeu uma nova vida, e esse era o plano para hoje a noite. A fuga. A liberdade. O cheiro de conspiração nas ruas de Oberá não era paranoia de Bento Santos. Somente o seu desprezo pela população nativa deveria ser maior do que o desprezo que eles sentiam por ele.

Essa paranoia fez com que grande parte dos soldados em serviço fosse remanejados para os arredores do palácio governamental, onde Bento morava junto com suas 3 esposas e meia dúzia de filhos. As ruas mais distantes da cidade sofriam saques e incêndios, o mercado onde era pego a ração semanal era um dos únicos pontos fora da região do palácio que ainda era efetivamente comandado por Bento e seus asseclas. 

Contando com o guarda que empurrou Estevan, visivelmente havia 13 soldados armados com AK47 e mais militares dentro de um tanque. Ao total menos de 25 soldados estavam fazendo guarda nesse ponto chave. Paloma ajudou Estevan a levantar-se do chão e começou a acalma-lo.

- Irmão, lembre-se o que papai nos pediu. – Disse Paloma enquanto ajeitava a franja do cabelo de Estevan. – Guarde essa energia para mais tarde. –

Antes de Estevan dizer algo, José pediu o silencio dos dois irmãos. O que parecia ser uma discussão estava se tornando um empurra-empurra nos primeiros lugares da fila.

- O que esta acontecendo? – Perguntou Estevan ainda meio confuso.

Bastou um tiro próximo da entrada do mercado para assustar tantos os guardas quanto os civis. Um civil havia entrado com um pequeno revolver escondido e feito o disparo. Esse disparo foi o início do caos.

O plano que era fugir de Oberá na madrugada precisaria ser revisto. O empurra-empurra acabou virando uma revolta contra os militares que tentaram fechar as portas do supermercado em vão. Os civis começaram a saquear o que viam e fugiam dos tiros disparados por soldados despreparados.

Jose pulou em cima do guarda que havia empurrado Estevan que tentava fechar o portão que dava acesso ao mercado. Paloma correu em direção à arma do irmão que estava junto com outras armas que os guardas haviam revistado dos civis. Ela entregou a arma para José e correu em direção a Estevan que com raiva chutava o guarda que já estava desarmado e rendido no chão.
Paloma empurra Estevan para trás e fica entre ele o guarda desacordado.

- Irmão, não vale a pena. Não seja como ele. – Disse Paloma.

Estevan cuspiu em direção ao soldado já desmaiado, agarrou as mãos de Paloma e puxo-a para trás de um carro fora da linha de tiro.

- Voltarei irmã, fique aqui!- Disse Estevan enquanto corria em direção a José que estava atrás de uma caçamba de lixo atirando contra os soldados. Jose entregou uma pistola para ele. Sorrindo, Estevan pega a arma e começa a disparar em direção do guarda que estava se protegendo próximo ao tanque.

Paloma começou a cantar uma musica na sua mente enquanto tapava suas orelhas com suas mãos. O barulho de tiro estava intenso e seu medo era perder seus irmãos e seu pai hoje. Não poderia perde-los.

O som de tiros foi abafado por uma explosão. Ninguém dos militares ou dos civis ali presentes possuíam armas capazes de explodir um tanque. Ao leste o som de trombetas indicava que a NACION POPULAR ARGENTINA estava por trás da explosão do tanque. Os militares restantes fugiram em direção ao centro enquanto as tropas rebeldes da NPA avançavam em posição de ataque para perseguir os soldados restantes.

O fogo se espalhou na área do mercado. Entre a fumaça, Jose e Estevan tiraram seu pai das proximidades do mercado até uma antiga praça localizada próxima ao mercado. Respirando com dificuldades, ele fora alvejado na altura do abdômen. Não poderiam levar seu pai para o único médico da cidade, pois qualquer ferimento a bala deveria ser comunicado as autoridades e na atual situação até o médico deveria estar na comitiva de Bento Santos.

- Não importa o que acontecer comigo crianças...- disse Nestor, respirando com dificuldades. – Vamos partir agora! Juan já deve estar nos esperando. - .

Saindo dos domínios de Bento Santos a sensação de segurança aumentara na cabeça de Paloma. Embora não lembre muito da sua vida antes da chegada a Oberá. A falta do barulho da cidade lhe caia bem. Partira os quatro em dois cavalos já preparados para a viagem em direção a encosta do rio Uruguai.

Eram cinco horas da tarde quando chegaram a um antigo vilarejo onde ficavam as bolsas que seguiam em direção à cidade brasileira de Porto Mauá. O vilarejo do lado argentino, viviam algumas família que vendiam seus serviços de transporte entre as fronteiras e a comercialização de itens para viagens.

Na rua do porto das bolsas, Estevan e Jose desciam Nestor do cavalo com cuidado e com a ajuda de Juan levaram para a sua casa. Enquanto isso, Paloma observava o rio em direção ao porto do lado brasileiro. Alguns barcos pesqueiros já estavam parados, estacionados esperando o próximo dia de pesca. Observando um pouco mais longe, conseguira avistar a famosa Ponte das Nações, que se encontrava em ruínas.

Paloma não deveria lembrar-se da história da ponte que fora inaugurada em 2034 e funcionou por algum tempo até tudo acontecer. Depois da queda dos Estados argentino e brasileiro, a ponte servia como ponto de fuga dos dois lados que buscavam melhores condições de vida. O problema começou em 2041 quando uma grave seca atingiu território da antiga argentina em detrimento de uma época de bom clima do lado brasileiro. O êxodo maior de argentinos causaram diversos problemas com os brasileiros da área de fronteira se tornaram constante.

A população de Porto Mauá e de moradores das povoações vizinhas resolveu contornar o problema argentino de uma maneira bem rápida. No dia 12 de junho de 2041 a ponte foi parcialmente destruída, impedido a livre circulação de pessoas de modo seguro. Parte dos que resolveram atravessar pelo rio acabaram sendo alvejados pelos moradores.

Paloma voltou para si depois do relinchar de um dos cavalos, levando-os até uma sombra onde os amarrou. Correu para a casa de Juan, avistando seus dois irmãos sentados num banco do antigo jardim de inverno da casa. Estevan bebericava um chimarrão enquanto Jose não parava de dar voltas dentro do pequeno cômodo.

-Como está papai?- perguntou apreensiva Paloma.

- Juan disse que ele vai sobreviver, chegamos a tempo aqui, graças a deus – suspirou Jose, - Devemos pensar como agiremos agora. Papai queria que atravessássemos logo a fronteira, mas agora não sei se continuamos ou esperamos as coisas melhorarem. -

Estevan esboçou uma resposta, mas ao perceber que Juan lhe chamava seguiu em direção ao cômodo que parecia um antigo escritório.

- Não quero saber como o seu pai levou o tiro ou o modo que vocês chegaram aqui, mas quero que saiba que vocês são bem vindos para ficar o tempo que precisarem, mas preciso ser franco com você Estevan. – Juan pensava como proferiria as próximas palavras – mas creio que seu pai não sobreviverá caso partam hoje. Ele está fraco e precisa de máximo repouso.

- Conheci seu pai na época da Guerra Civil Paraguaia em 2019. Servimos no mesmo batalhão durante o conflito. – Estevan ficou surpreso. Seu pai nunca havia contado que participara da guerra. Ele era apenas uma pequena criança quando a guerra civil nas antigas fronteiras paraguaias estourou. Batalhões dos países vizinhos invadiram quando após um golpe-de-estado o ditador rompeu com A Comunidade Sul-Americana e perseguiu cidadãos dos países membros alocados dentro das terras paraguaias.

Após os batalhões de pacificação tomarem Asunción, a antiga nação paraguaia fora assimilada pela República Argentina e pelo Brasil, tornando-se um Estado com estatuto especial dentro do território das duas nações. Amplamente criticado pela comunidade internacional pelo o que muitos consideraram como uma anexação arbitrária, nada além de críticas vazias saiu do Conselho de Segurança da ONU e das outras potências.

Estevan lembrou que estudara a Guerra Civil Paraguaia durante o colégio e era um tema recorrente nas aulas de Relações Internacionais que cursava na Universidade de Córdoba. Não chegou a concluir o curso, como muitas outras cidades, Córdoba fora bombardeada. Estevan estava na casa de seus pais no interior de Oberá.

- O que será que estão conversando lá dentro irmão? – perguntou Palome curiosa.

- Não consigo ouvir Paloma, mas creio que vamos adiar a ida ao Brasil.- respondeu em Jose em seco.
A porta do escritório se abriu. Juan apertou a mão de Estevan antes de seguir para dentro de sua casa. Estevan se aproximou alegremente em direção aos seus irmãos, e antes que Paloma perguntasse algo, ele disse:

- Por hora ficaremos aqui. Até nosso pai se recuperar, Juan é um velho amigo de papai.-

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Passara uma semana que haviam chegado nessa pequena comunidade, Nestor já andava novamente, e os planos para cruzarem a fronteira se concretizariam na noite do dia seguinte. Mas o improviso foi necessário, pois não esperavam o que aconteceu naquela noite.