Paloma tentava
lembrar-se do que acontecera. Estava deitada numa canoa parcialmente queimada. Sua
cabeça doía e um zumbido lhe impedia de ouvir qualquer outra coisa.
- Papai?- tentou gritar
Paloma, mas sua garganta estava tão ardida e seca que as palavras saíram quase
como um sussurro.
A água do rio batera
mais uma vez com força na canoa que encalhara nas margens do antigo porto. A
vibração da água e da canoa acordaram de vez Paloma, que assustada tentava se
levantar. Meio zonza, ela se apoiou na canoa para tentar sair. Na primeira vez,
caiu novamente dentro da barco, na segunda vez se impulsionou para fora e caiu
novamente, mas desta vez em terra firme.
Sentou-se na beira do
rio e bebeu um pouco de água, esperando que isso aliviasse a sua dor de
garganta, mas a sensação de ardência continuava. As estrelas brilhavam naquela
noite e a Lua que estava na fase cheia, era refletida pelo rio que calmamente
seguia seu curso. A sua cabeça ainda doía um pouco, mas a sensação de tontura
passara.
Levantou-se
vagorosamente e olhou para uma antiga placa que estava próxima. Primeiramente
não acreditou no que leu, mas após ler novamente, estava claro. Na placa estava
escrito: “Seguir as normas de transporte
aquático salvam vidas! Qualquer dúvida procure o posto mais próximo da Marinha
do Brasil.”
-Estou no Brasil!- concluiu
Paloma. Olhou para o horizonte em busca do porto que ficava do lado argentino,
mas só conseguia ver fumaça e fogo. O pânico tomou conta de Paloma.
-Juan! Jose!- tentou
novamente gritar, mas foi em vão. Paloma estava pela primeira vez em sua vida
sozinha.
Ela perdera a noção do
tempo e acabou por adormecer próxima a canoa. O sono foi cheio de pesadelos e
sentimentos ruins. Uma leve cutucada a fez acordar assustada. Um senhor de meia
idade calmamente esperava o seu despertar apoiando-se na sua velha bengala.
- Bom dia menina.- disse
docemente o senhor. –Você parece perdida, não? Está com fome?-
A palavra fome lhe
despertou uma forte dor no estomago. Estava faminta. Paloma sem dizer nada
somente gesticulou com a cabeça um sim. Com um sorriso, o senhor lhe estendeu
uma mão. Subiram lentamente o morro que separava o porto da pequena vila.
Paloma olhou uma última
vez para traz, além do rio, para a pequena vila do lado argentino. A vila havia
sido reduzida a fumaça e escombros.
A cidade de Porto Mauá,
antes das bombas tinha uma população de menos de três mil habitantes, que
viviam da agricultura e da pesca, além de uma parcela da população ser composta
por funcionários públicos que trabalhavam no tráfego e na fiscalização na ponte
que unia a Argentina e o Brasil.
Embora parecesse
abandonada, a cidade possuía alguns moradores que viviam nas casas mais
próximas das áreas de plantio do que na beira do rio, pois enchentes eram
recorrentes e algumas delas o rio chegava a subir mais de vinte metros,
inundando as ruas centrais da vila.
Na rua central existiam
indícios ainda de uma inundação recente. A sujeira e o lodo cobriam grande
parte do asfalto. Alguns carros estavam tombados e outros haviam sido
arremessados pela força da enchente em casas e estabelecimentos. Porcos e vacas
vagavam pela rua em busca de alimento.
O senhor que se apresentou
como Deodoro vivia próximo à ponte que uma vez unira as duas maiores nações da
América do Sul. Era engenheiro e trabalhou no projeto da construção da ponte.
Na época, trocou a agitação de Porto Alegre por essa cidadezinha para
aproveitar a sua aposentaria que nunca chegou.
Deodoro nunca teve
desejou ter filhos nesses seus 50 anos de existência, mas depois dos 40 anos
sempre pensar em adotar. Para ele o mundo estava conturbado e cheio de pessoas
e conflitos, para que ter mais pessoas sofrendo nesse mundo?
-Chegamos, mocinha.- disse
educadamente Deodoro, tirando a sua boina que escondia o seu cabelo grisalho. –
Mas antes de estramos, quero saber seu nome.-. Depois que ele parou de rir,
envergonhadamente, ela respondeu.
-Meu... nome Paloma.-
-Muito prazer senhorita
Paloma.- falou Deodoro cumprimentando novamente Paloma. – Entre menina, vamos!
João já deve ter servido o café da manhã.-.
A casa térrea era
espaçosa e bem iluminada com grandes janelas de vidros que davam a sensação de
uma casa bem confortável. Na sala de estar, a televisão servia como uma central
de monitoramento, com câmeras que vigiavam os arredores da propriedade. Da
cozinha vinha um cheiro delicioso de pão quentinho.
-Espere aqui menina.-
sussurrou gentilmente Deodoro enquanto se dirigia a cozinha. Paloma deu algumas
voltas pela sala observando alguns quadros e pinturas que estavam pendurados na
parede.
No canto esquerdo da sala um pano cobria um piano que parecia que a
muito tempo ninguém tocava.
Paloma tomou um susto
quando a porta de cozinha voltou a abrir. De lá saiu o João. Diferentemente de
Deodoro, ele era alto e seu cabelo não era totalmente grisalho. Deveria possuir
mais ou menos a mesma idade que Deodoro.
-Então você é Paloma?-
observou João meio desconfiado. –Venha para a mesa! O café está servido. -
- Pos-pos posso lavar
minhas mãos antes? Perguntou Paloma
-Primeira porta depois
do corredor. - respondeu João apontou em direção próxima ao piano.
Ao adentrar no
corredor, as luzes automaticamente foram acessas. A porta do banheiro estava
entreaberta e quando ela entrou a luz do banheiro também acendeu.
Olhou-se no espelho,
seu cabelo ruivo estava desarrumado com pequenas folhas presas nele. Seu rosto
embora doesse da noite passada, não tinha sinais de corte, apenas de fuligem e
sujeira. Lavou suas mãos igualmente sujas e o seu rosto rapidamente.
-Vamos lá Paloma, você consegue
falar português. Eles foram gentis com você! Talvez saibam o que aconteceu... –
Ela
havia aprendido um pouco de língua portuguesa na escola, até que as bombas
caíram e a sociedade entrasse em colapso. Seria difícil, pois até o presente
momento ele deveria ter conversado em português uma ou duas vezes somente fora
da escola.
Secou
o seu rosto e voltou para cozinha, onde João e Deodoro já haviam começado a
comer o desjejum.
-Vamos
menina, sente-se!-
Paloma
sentou-se e pegou uma fatia de pão e colocou no seu prato. Próximo dela havia
um pote com uma geleia que parecia ser de uva ou amora. Passou a geleia no seu
pão e começou a comer lentamente.
-Então...
Paloma- começou Deodoro a falar, - o que traz você para essa linda e desolada
terra chamada Brasil? – rindo um pouco da sua própria fala, serviu um copo de
suco de laranja num copo e ofereceu para ela.
Bebendo
quase todo o copo, Paloma respirou fundo, a sensação do suco descendo em sua
garganta e matando a sua sede era maravilhosa. A geleia que era de uva estava
soberba e o pão ainda estava quente, indicando que havia saído a pouco do
forno. Eles pareciam ser boas pessoas. Deodoro convidou-a para ir a sua casa
sem pensar duas vezes, mesmo João que era mais reservado lhe passava uma
sensação de segurança.
Sem pensar duas vezes, Paloma calmamente
contou a história da sua vida. Misturando nas frases palavras em português e em
espanhol, falou de sua família antes do apocalipse, dos momentos que fugiram
até chegar em Oberá, dos momentos de terror que viviam ali até a fuga da cidade
e a chegada na fronteira ainda do lado argentino. Sobre como chegou até o lado
brasileiro ou do incêndio do outro lado ela não se lembrava de nada.
João
deu um abraço em Paloma e Deodoro pegou em suas mãos. Ela começou a chorar na
presença dos dois estranhos que entraram em sua vida. Depois do café, Deodoro
achou algumas roupas e ofereceu para que Paloma pudesse tomar um banho.
-Não
se preocupe menina- disse Deodoro apontando para o chuveiro do banheiro – pode
demorar o quanto quiser. –
Enquanto
a agua do chuveiro descia rapidamente sobre o seu corpo, seus pensamentos
estavam em seu pai e nos seus irmãos. Onde estavam? Estariam bem? Se estivessem
bem, porque teriam deixado ela sozinha?
Demorou
mais de trinta minutos no chuveiro. Vestiu a calça jeans masculina e a camiseta
xadrez cinza que pelo tamanho deveria pertencer a João.
Ao
abrir a porta do banheiro, ouviu sons que pareciam ser do piano. Entrando na
sala apoiou-se na parede e observou João tocando uma melodia que era familiar
para Paloma.
-Gosta
de música clássica, menina? -
-Nunca
fui uma apreciadora, mas elas me relaxam. –
Ele
parou de tocar. Olhou mais atentamente para Paloma e observou como as roupas
ficaram nela.
-Você
está linda com essa roupa. Tem bom gosto. –
Paloma
começou a rir.
-Sabe
Paloma, que esse piano eu ganhei de presente de Deodoro? Era o nosso
aniversário de 10 anos de casado e ele sabia que há muito tempo atrás eu tocava
piano. E então um dia ele me levou para um jantar numa barco no meio do rio e
quando voltamos o piano estava aqui na sala. –
-Que
lindo. - Respondeu amorosamente Paloma.
-Sim
– concluiu João com um sorriso – o melhor dia da minha vida. –
Ele
levantou-se e levou Paloma para conhecer o resto da casa. A casa era composta
por mais dois quartos e uma garagem. Indo para fora de casa, havia vários painéis
solares no telhado e uma grande cisterna subterrânea que armazenava água. Atrás
da casa, algumas plantações e um enorme galpão continha algumas vacas e dois
cavalos.
Logo
depois de voltarem para dentro da casa, Deodoro chegou a casa. Ele trazia
consigo algumas frutas e peixe que trocara por parte do leite que suas vacas
produziam naquele dia.
Era
meia tarde e ela resolvera dar uma volta para conhecer melhor as redondezas.
Vagueou por algumas casas abandonadas, olhou por vitrines vazias, cujas lojas
foram saqueadas ou que a própria enchente levara todas as mercadorias. Antes de
voltar para casa resolvera olhar a antiga ponte mais de perto.
Na
estrada que levava ao pátio de espera para cruzar a fronteira, dezenas de
veículos encontravam-se abandonados, cujo seus donos provavelmente preferiram
cruzar a ponte a pé enquanto os guardas dos dois lados inutilmente tentavam
impedir esperando por alguma resposta emergencial de seus governos que nunca
chegou.
Em
alguns carros ainda era possível observar malas e objetos deixados para trás.
Paloma tinha apenas doze anos quando as bombas caíram, mas lembra de algumas
noticias que ouvira falando sobre a falta de informação em embaixadas e posto
de fronteira deixaram as coisas mais caóticas. Avançando em direção a entrada
da ponte, entrou com cautela na ponte, lendo as inúmeras placas com informações
em espanhol, português e inglês.
Andou
apenas 20 metros sobre a ponte até encontrar o ponto onde ela havia entrado em
colapso com a explosão feita pelos moradores das redondezas. Perto do fim da
ponte sentou-se em uma motocicleta. A moto embora sofrida com a ação do tempo,
ainda estava firme, apoiada pelo pé. Levantou-se da moto para pegar um capacete
sem viseira que estava próximo e sentou-se novamente.
Colocando
suas mãos no guidão da motocicleta, e imaginou por algum tempo que pilotava a
moto, dirigindo pelas terras desoladas da América do Sul. Alguns gritos no rio
despertaram-lhe da sua fantasia continental. Alguns pescadores estavam
terminando mais um dia de trabalho, e os gritos eram apenas algumas palavras
proferidas por eles.
Nisso
Paloma percebera que já haviam se passado algumas horas desde que resolvera
passear e o sol já estava se pondo. Permitiu-se ficar mais um pouco e observar
as misturas de cores que o céu trazia somente nesse horário. O firmamento
estava ricamente colorido, conforme tons de laranja, o vermelho e o rosa se
misturavam ainda mais com o sol se despedindo no horizonte, trazendo mais uma
noite.
Ao chegar a casa,
encontrou Deodoro e João assistindo alguns filmes antigos. Eram filmes caseiros
que os dois filmaram de suas viagens pelo Brasil e pelo exterior. As risadas
preencheram o ambiente, onde os dois contavam algumas histórias que aconteceram
nessas viagens para Paloma.
Alguns dias haviam se
passado e Paloma não conseguia se lembrar de o que acontecera naquela noite em
que acordara do lado brasileiro. Toda vez que se lembrava de sua família, um misto
de sentimentos, de impotência, de solidão e medo invadiam sua mente e seu
corpo. Tentava manter esse pensamento longe, ajudando os seus dois benfeitores
nas tarefas da propriedade, embora nunca tenham conversado diretamente sobre
morar permanentemente com eles, fora ficando e sendo aceita na vida deles.
Paloma acreditava em
destino, sorte e carma. Quem sabe fora o destino que lhe trouxe um encontro
inesperado perto do antigo porto naquele dia 16 de fevereiro.
Depois de ajudar a
tirar os animais do galpão, Paloma resolveu dar uma volta até o porto para
olhar em direção ao local que vira a última vez sua família. Nenhum sinal de
reconstrução ou de limpeza ocorreu no local onde o incêndio havia destruído toda
a pequena vila argentina.
Sentou-se em uma pedra
na beira do rio, seus pés sentiam a agua gelada que corria rapidamente em
direção ao sul. O céu estava limpo e o sol já iluminava todo o céu. O vento que
embora fosse fraco, mas constante, as vezes abafava o som das águas e das aves.
Paloma ouviu alguns
passos vindos em sua direção. Era um dos moradores das redondezas que carregava
o seu equipamento para mais um dia de pesca. Era um homem moreno, usando um
chapéu de palha para se proteger do sol, e deveria ter mais ou menos com 30
anos, deduziu Paloma.
O homem estava
conferindo o seu equipamento de pesca e proferiu algumas palavras ofensivas
para si em espanhol, quando percebeu que havia esquecido alguns anzóis.
-Você fala bem
espanhol- disse Paloma em castelhano, segurando algumas risadas.
O homem ficou
envergonhado a perceber que ela havia entendido as palavras ditas por ele.
-É meu idioma nativo.
Vivi minha vida inteira em Mercedes até tudo começar a desandar. Vim para o
Brasil pela ponte, anos antes deles explodirem ela. -
-Desculpe pelas
palavras feias de antes menina, - continuou o homem, - meus filhos ficam usando
meus equipamentos, mas nunca colocam de volta no lugar.
Paloma riu. Continuou
conversando com ele por alguns minutos. Murilo tinha dois filhos, e ele e sua
esposa geriam uma casa de passagem para viajantes que precisavam passar a noite
em um lugar seguro.
-Esses dias, uns grupos
de sete pessoas chegaram com presa lá em casa, - comentou Murilo – estavam com alguns
ferimentos, um senhor estava em estado mais grave. Queriam partir mais um homem
que estava com o grupo os convenceu que passar uma noite tranquila seria melhor
para todos. –
Paloma ficou pensativa.
-Poderia ser sua família e outros sobreviventes
que foram procurar ajudar? Teriam deixado ela para no porto para ser buscada
depois e como acabou indo embora seus irmãos não lhe acharam? -
-Como eram essas
pessoas? – perguntou esperançosamente Paloma. Antes de Murilo responder, ela
descreveu os seus irmãos e seu pai, acreditando que pudessem ser eles.
Murilo pensou um pouco.
-Não irei te dar falsas
esperanças, mas de todos que você descreveu, um parecia ser como você
descreveu. Jovem, uns vinte e poucos anos, moreno e olhos verdes. Quem seria
esse? – perguntou Murilo curioso.
-Juan, meu irmão. –
Disse Paloma.
-Sabe para onde eles estavam
indo?- perguntou.
–Podem
não estar muito longe. – pensou Paloma.
-Eles estavam
procurando algum lugar para curar os ferimentos do senhor que estava com eles.
Aqui não temos médicos, então minha esposa sugeriu alguns lugares maiores que
poderiam ter alguém que pudesse ajudar. Talvez Tucunduva, Três de Maio ou
Horizontina, mas não tenho certeza para onde poderiam ter ido. -
Sem dizer adeus a
Deodoro e João, saindo somente com a roupa do corpo e uma garrafa d’água,
Paloma partiu. Seguindo por rotas abandonadas e como guia somente as placas e
alguma informação ou outra que conseguia por moradores ou por viajantes que
cruzavam as rotas.
Caminhou durante dias,
o sol castigava, mas evitava andar a noite, preferindo se esconder em alguns
carros ou construções abandonadas por medo de possíveis malfeitores percorrendo
as estradas. Sem comida e pouca água que às vezes encontrava em riachos ou
poças, sua saúde ficou frágil.
Era começo da noite de 27
de fevereiro quando chegou ao portão da cidade. Naquele dia Fernando estava na
vigia quando percebeu duas fracas batidas. Resolveu verificar por uma pequena
janela para ver quem era. Paloma havia desmaiado, estava fraca demais para
continuar de pé.
Fernando então a
carregou até a enfermaria que ficava ao lado da delegacia. Lá Beatriz e ele
acomodaram como melhor podia Paloma, enquanto esperavam o seu pai buscar o
médico que estava em Três de Maio.
Nos dois dias que ela
ficou adormecida, Fernando e Beatriz se revezaram em seus cuidados, que embora
não fossem nada graves, exigia acompanhamento. Era o primeiro dia de março
quando Paloma acordou.
Fernando estava lendo
numa poltrona que ficava próxima a porta do quarto onde ela estava deitada. Ao
perceber que ela havia acordado, ele saiu rapidamente do cômodo, alguns minutos
depois ele apareceu novamente com um copo d'água, do qual Paloma bebeu
rapidamente.
-Qual o seu nome?-
perguntou timidamente Fernando.
-Paloma- disse ela
risonhamente.
Eles conversaram um
pouco. Antes de acabar seu turno, Fernando trouxe uma rosa para Paloma e disse:
-Bem vinda a
Horizontina. Espero que encontres o que procura. –