quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Capítulo 7: Lembranças - Parte 1-

Horizontina, vinte de abril de 2048

Depois de aquele pequeno ataque de nervos, Fernando resolvera ir à sua antiga casa na cidade. Não era distante do centro, onde vivia agora. Seu pai embora tivesse residência no seu hotel, ele nunca havia abandonado a antiga casa a qual havia comprado quando se casara com Amélia.

As ruas mais próximas que ficavam de fora da muralha estavam limpas, sem entulhos ou acúmulo de sujeito. Conforme se distanciava dos portões, as pequenas ruas que saiam que cortavam as vias principais mostravam os dez anos de abandono. Como sempre ouvia em discussões e na televisão: No final a natureza retomaria tudo.

Casas que sempre tiveram jardins impecáveis se tornaram verdadeiras florestas, pássaros e outros pequenos animais eram comuns serem vistos saindo de uma janela ou porta que fora esquecida aberta. Algumas casas que foram consumidas por um ou outro incêndio o sinal do retorno da natureza era maior. Paredes que haviam permanecido em pé eram atravessadas por raízes, troncos e galhos.

As ruas asfaltadas ainda resistiam bem. Rachaduras aqui e ali permitiam que algumas espécies de plantas pudessem sobreviver lá, mas conforme as ruas de asfalto eram substituídas por ruas de pedra, pouco restava à mostra. Os caminhos mais usados para locomoção ainda resistiam, mas logo, arvores e arbustos maiores floresceriam também.

Na rua da sua antiga casa, entre várias casas tomadas pelo tempo e carros esquecidos, uma casa era singular. A grama aparada, as arvores próximas podadas e uma pequena horta cuidada aonde era um terreno abandonado. Estava em casa. Seu pai estava lá, colhendo os últimos vegetais da safra de abril.

- Essas alfaces estão bem bonitos pai. –

- Espere para ver as abobrinhas. Vão ficar ótimas num ensopado. –
João Henrique largou as alfaces e deu um abraço em Fernando.

- Como vão as coisas no hotel? –

- Vai bem filho. Com o fim de abril chegando, sabe que maio é um mês bem parado, mas estou esperando alguma agitação quando chegarem os transferidos de Piratini. –

- Sim, sim pai. Estou para chegar nos próximos meses os militares para guarnecer a região, e mais alguns comerciantes e suas famílias na região. O prefeito está formando uma força tarefa para restaurar algumas residências e lojas comerciais para oferecer para os novos moradores. Sabe que embora Três de Maio e Horizontina sejam cidade amigas, sempre tiveram uma rivalidade para atrair investimentos e pessoas. –

- É verdade filho, mas me seja franco, filho você não veio aqui só para ver como estava a minha horta não é? –

Todos esses anos e João Henrique ainda sabia ser irônico com os filhos. Essa resposta pegou Fernando de surpresa.

- É... Na verdade vim visitar a mãe. Faz tempo que não a visito. –

- Sem problemas filhos, só não desapareça depois... Como nas últimas vezes. –
Fernando entrou pela porta da frente enquanto seu pai ria descontroladamente.

Dentro da casa, os mesmos quadros, as mesmas fotos estavam lá, no mesmo lugar que sempre estiveram. A casa estava limpa, impecável. Parecia que estava a espera deu uma visita importante, mas hoje em dia quem teria muito tempo para visitas?

Olhou cada cômodo da casa, cada objeto. Tudo lembrava tempos que não voltavam mais. Na garagem, o carro que nunca voltara a funcionar estava lá. Limpo como se tivesse saído de um lava carro.

Saindo da casa por trás, observou a pesada porta onde levava ao bunker. Desde a primeira vez que havia saído da primeira vez a pouco mais de dez anos, nunca mais quis entrar novamente nesse espaço. Havia quebrado essa promessa apenas uma vez, numa noite a mais de sete anos. Desviando o olhar da porta foi em direção ao túmulo onde sua mãe repousava.

A lápide dizia: Amélia Ebner Costta, 12/02/1990 - 18/03/2041

As lembranças de sua mãe traziam conforto e paz de espírito, mas também certa inquietação. A morte de sua mãe fora prematura, mas também era provável naqueles dias. Sem medicação apropriada e imunidade fraca qualquer ser humano pereceria. Aqueles dias anteriores da morte de sua mãe foram dias especialmente agitados.
          
                                              Horizontina, 17 de março de 2041

O relógio estava com seu tic-tac habitual e constante. As engrenagens do relógio funcionavam como um corpo perfeito. Se fosse para comparar com Fernando e Amélia, estes pareceriam um relógio com defeito. O único som que interrompia o som habitual do relógio era os trovões que não cessavam mesmo depois do fim de um dia de tempestade, e barulhos de artilharia pesada.

Os argentinos haviam imigrado em massa para terras brasileiras, o que causou escaramuças espalhadas em toda a fronteira não contaminada. Muitos grupos vieram organizados com armamentos e táticas militares. Doutor Maurício Cardoso estava a três dias tomados por quase uma centena de platinos e estes tentavam se expandir.

Estavam a 5 km de Horizontina e todo o homem e mulher apta estava na luta. Mas não havia só horizontinenses na batalha. Três-maienses, santa-rosenses e até alguns militares profissionais da Cidade Livre de Santo Ângelo estavam na luta para impedir o avanço argentino. Fernando havia se ferido no dia anterior com estilhaços de uma bomba e estava com o rosto machuco com um enorme corte.

Beatriz e João Henrique estavam em linha de frente. Horizontina que estava com metade da construção de uma muralha no seu centro estavam com as obras paradas, algumas pessoas já haviam fugido esperando pelo pior. Naquele dia com a ameaça de a defesa ceder e Horizontina ser invadida, Fernando e Amélia estavam no bunker.

Amélia embora não tivesse ferida pelas batalhas, estava doente fazia alguns dias. Começara como uma gripe comum, mas a febre insistia em não diminuir. Simples antibióticos resolveriam o problema facilmente, mas em tempos que se as vezes se briga até a morte, comida e remédios se tornaram valiosos e perigosos. Numa mesa de canto ao lado da porta, um revólver com duas balas, caso fosse necessário.

O bunker não estava lacrado como quando as bombas explodiram. Uma pequena fresta mantinha um mínimo de circulação no ar, substituindo os filtros que já não funcionavam mais.

- Odeio esses barulhos, me deixam ainda mais angustiada. –

- Os trovões ou da artilharia mãe? –

- Os dois. Nunca gostei de trovões, e a cada barulho de explosão ou tiroteio, me fazem lembrar que eles estão lá fora lutando. –

- Pelo menos não está chovendo mãe. Com chuva você mal escuta os tiros e as explosões. –

- Pelo menos (...) –

Uma explosão distante assustou os dois.

- Essa pareceu mais perto Fernando. –

- Calma mãe. Eles sabem se cuidar. –

A tosse de Amélia estava mais seca, nem conseguiu responder Fernando, apenas concordou balançando a cabeça. Amélia acabou caindo no sono, à febre a deixava quase o tempo todo dormindo, mas Fernando não conseguia descansar. Sentia-se um inútil. Não conseguiu nem ajudar a defender seu lar e muito menos conseguia ajudar sua mãe.

Fernando empurrou a porta do bunker um pouco. Queria sair, respirar um pouco o ar frio da noite. O céu poderia ser dividido em dois naquela noite. Em direção ao sul as nuvens de chuva ainda produziam trovões, ao norte as estrelas tomavam conta, a lua estava lá como sempre. Um objeto ainda piscava no céu em ritmo cronometrado. Seria um satélite ou uma das estações espaciais?

A batalha acontecia ao norte, Fernando conseguia ver fumaça no horizonte. Os tiros estavam ficando mais distantes. Será que estavam vencendo? Fernando resolveu acender um cigarro. O cigarro embora fosse um vício, dava certo conforto e ajudava colocar seus pensamentos em ordem.

O cigarro já estava no fim quando mais uma explosão clareou rapidamente o horizonte. Antes de olhar em direção aos combates, o clarão já havia desaparecido. Então tudo ficou quieto. Os sons de tiros e de explosões se tornam tão comuns, que você somente nota novamente se o som ficou mais alto. Se ficar mais alto pode significar que a batalha está chegando mais perto ou que o grande ato das batalhas, daqueles que podem mudar tudo, acontecer.

Nesses momentos, o silencio pode nos indicar que tem algo errado no ar. O ambiente estava calmo. Calmo até demais. Lançou para longe o pequeno resto do cigarro e entrou novamente dentro do bunker, fechando com força a porta. Dentro do bunker o único som era o da sua própria respiração e da sua mãe.

Por hora tudo estava ok.

Fernando acendeu uma vela e a colocou na mesa ao lado da arma, esta que seria a ultima opção caso desse tudo errado. Pegou a arma e a examinou, estava em perfeito estado de conservação e totalmente funcional. Embora Fernando não fosse um excepcional atirador como sua irmã, ele tinha uma mira relativamente decente para alvos parados.

Beatriz ao contrário, parecia ter nascido para puxar o gatilho. Qualquer fosse o alvo, dificilmente ela erraria. Quando os argentinos tomaram Doutor Maurício Cardoso, ela foi uma das mais entusiasmadas para partir para a luta. Vivia a luta, respirava e sentia prazer no que fazia.

Fernando colocou a arma no lugar e respirou fundo. O cheiro do cigarro estava em suas mãos, na sua roupa e no ambiente. Queria fumar mais um cigarro, mas conteve-se. Sua mãe agitou-se um pouco, tossindo mais um pouco. A febre parecia estar pior a cada momento que Fernando olhava sua mãe.

- Fernando? – O som mal saiu da boca de Amélia

- Descanse mãe, descanse. –

- Filho, eu não vou aguent... – Um novo surto de tosse interrompeu a frase. Essa havia sido a pior até agora.

Fernando observando sua mãe, percebeu que estava a perdendo.
Seus olhos castanhos mal permaneciam abertos. A respiração cada vez mais lenta, seus cabelos que já foram perfeitamente liso e arrumado estava totalmente desgrenhado. A sua aparência já não condizia com sua idade. Em três anos ela envelhecera mais de 10 anos.

- Filho preste atenção em mim. Não chore por mim, lembre-se dos momentos bons que tivemos. –

- Quero que faça algo para mim Fernando. –
A respiração de Amélia estava ficando a cada minuto mais lenta. Fernando mal controlava as lágrimas, segurou as mãos dela contra a sua. Conforme suas mãos alisavam as mãos de sua mãe, mais lagrimas apareciam. Estava desolado, o desespero tomava conta de cada parte do corpo dele.

- Não, não, não, não mãe. Não vou te perder. –
Fernando tentou engolir os soluços e controlar a respiração.

- O que você quer que eu faça mamãe? –

- Tem uma pessoa filho (...)    vai ajudar. Um amigo que perdi contato antes da guerra. Ele... ele pode ajudar. –

- Quem é ele mãe? –

- Um amigo (...) possui bastantes tatuagens, tem uma... que você iria gostar. Ele tem uma tatuagem de (...) com cabeça de cachorro. Um deus. –

- Não entendi mãe. –

- Tatuagem de um deus, de uma pessoa com cabeça de cachorro. –

- Anubis mãe?-

- Eu (...), creio filho. Ele pode te ajudar quando o momento chegar e ele voltar para cá, ele prometeu, mas antes disso prometa (...) não conte para seu pai ou sua irmã. –

- Promete? –

- Prometo mãe. Você não me disse o nome dele, mãe...-

Fernando olhou para sua mãe novamente. A respiração havia cessado. O desespero tomou conta de Fernando. O choro que estava apertando para sair, se libertou. Fernando caiu no chão feito uma criança. 

Sua mãe estava morta.

Lembrou-se da arma. Abriu o bunker e saiu com arma. Apontou em direção da sua testa.
A respiração ofegante, a tontura, a dor, o ódio, a infelicidade. Fernando queria acabar com sua vida agora mesmo, mas não conseguia disparar a arma contra sua cabeça.

Gritou como nunca havia gritado. Tirou a arma de perto da cabeça e disparou as duas balas em direção aos céus.


O mundo girou, e Fernando desmaiou.

(Capítulo 7: Lembranças -Parte 2-)


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