A cidade de Horizontina
tinha uma população de um pouco menos de cento e cinquenta pessoas, um número
populacional até que expressivo para esses tempos. Em seus tempos de glória
tinha atingindo um pouco mais de vinte e cinco mil habitantes. Em busca de
viver numa comunidade em segurança, diante dos inúmeros distúrbios, ataques e
emboscadas, os moradores sobreviventes haviam cercado o centro da cidade.
As quadras que cercavam
a prefeitura e a praça central da cidade foram protegidas com a construção de
uma muralha improvisada, feita com materiais que havia estocado em lojas de construção
e das casas próximas que foram demolidas. Nesse processo de reorganização da
comunidade, as proximidades foram limpas para permitir que pudesse ser visto qualquer
aproximação de pessoas a distancia e também para permitir uma futura produção
agrícola mais próxima da cidade.
Horizontina ficava
próxima de duas comunidades que eram baseadas nas vizinhas Três de Maio e
Doutor Maurício Cardoso. Havia calmaria entre as três, e um comércio local era
feito entre elas. Três de Maio era a maior comunidade das três, tinha mais de duzentos
habitantes, e era uma cidade que herdara muitas indústrias de produção de alimentos
e de vestuário, algumas voltaram a funcionar graças à energia eólica em pequena
escala.
Doutor Maurício Cardoso
era uma pequena comunidade com cinquenta e sete pessoas que se dedicavam ao
comércio dentro do rio Uruguai entre o lado brasileiro e argentino além da pesca.
A cidade servia também como um ponto de observação entre as duas fronteiras, pois
servia de alerta no caso de alguma circulação ou invasão de argentinos fugindo
das suas terras.
Horizontina
não era uma cidade de pequenos agricultores como a sua vizinha da barranca do
rio Uruguai, mas também não era industrializada como Três de Maio. A única grande
indústria era uma que nos velhos tempos produzia tratores e colheitadeiras. O
ponto chave da sobrevivência da população da cidade fora a agricultura
hidropônica que era praticada em larga escala pelos agricultores e alguns moradores
da cidade. Como todo o estado do Rio Grande do Sul sendo rico em águas
subterrâneas, a pratica da agricultura foi normalizada após o primeiro ano.
Horizontina,
cinco de abril de 2048.
Desde os tempos que salvara
o seu pai nos primeiros dias após o começo de todo o caos, ela sentiu uma força
interior que estava presa dentro dela. Desde aquele dia seu pai viu um potencial
na filha que sempre fora ignorado por ele e pelo restante da família.
Beatriz aprendeu a manejar
armas, sua mira era perfeita. Quando as coisas começaram se restabelecer no
centro da cidade, ela por iniciativa própria refundou a delegacia de polícia. No
começo a delegacia de polícia funcionava com mais quatro policiais, sendo todas
elas mulheres. As mulheres desempenharam um fundamental para a sobrevivência da
cidade em longo prazo.
Beatriz
parecia que dormia sempre de uniforme. Independentemente da hora que fosse chamada,
ela estaria pronta para o que der e vier. Esse cinco de abril foi um dia muito
calmo na cidade, todos os policiais foram dispensados por ela. Poderia hoje
logo após de ajudar na construção de uma turbina eólica relaxar em casa, no
silencio de seu lar com alguns livros e uma boa xícara de chá.
Depois
de erguerem a terceira turbina eólica, Beatriz seguiu para o almoço com seu pai
na hospedaria da cidade. Desde que João Henrique fora salvo por sua filha, ele acreditou
numa antiga frase que sempre ouvia, mulher
é o sexo forte sim!. Com o falecimento de Amélia, JH decidiu reabrir o antigo
hotel que ficava no centro da cidade para manter sua mente ocupada e ficar sabendo
de histórias de viajantes sobre suas aventuras.
A
carne era racionada na cidade. Embora a cidade tenha um bom número de bois e vacas
nos estábulos, eles ainda serviam muito mais vivos do que num prato. O transporte
de mercadorias e de materiais diversos era feito em grande parte por eles. O
leite era o único alimento produzido pelas vacas que era amplamente distribuído
entre a população local.
Enquanto
Beatriz mastigava com paciência um diminuto pedaço de peixe, seu pai a observava.
Não com um olhar de autoridade paternal, mas sim orgulhoso.
-Acredito
que Fernando volte hoje de sua aventura. Espero que ele volte com o que procura
a mais de cinco anos....-
Enquanto
João Henrique voltava seus olhos para o seu prato ainda cheio de salada, Beatriz
olhava para suas mãos. Nos raros momentos de folga, ela sentia falta do seu trabalho,
sabia que se perdia fácil em seus pensamentos mais profundos. Estava em transe,
pensava em muitas coisas.
Pensava
no seu irmão, que era um pouco irresponsável por sair sozinho, sem levar muita
munição ou muito menos avisa-la que sairia por uns dias. Pensava na sua falecida
mãe, sabia que onde quer que ela esteja, teria orgulho de tudo o que foi feito até
agora. Enquanto pensava nisso, nem percebera que seu pai estava conversando com
ela.
-Filha?
Você esta bem?-
Essa
ultima frase a fez despertar do seu transe. Olhou de volta para seu pai que a
observava com um olhar curioso.
-Desculpe
pai, eu.....-
JH
deu uma gargalhada. Não achou engraçado o fato de ela pedir desculpas por não
ouvi-lo, mas riu por ela o ter chamado de pai. Fazia anos que não ouvia dizer
isso.
-Sabe
filha, faz anos que não vejo você me chamando de pai. Como todos por aqui me chamam
de JH, me acostumei a ser chamado assim. É bom ser lembrando pelo meu verdadeiro
papel na nossa família.-
JH
deu uma piscada de olhos para Beatriz, no qual ela retribuiu com uma careta.
-Falando
no Fernando, você sabe o que ele procura tanto?-
João
Henrique tomou um gole de água e respondeu negativamente. Esse era o maior
segredo que seu filho tinha e que não contou para ninguém, nem sua esposa sabia
o que era. O resto do almoço foi uma coleção de história do tempo de infância
de JH e de história do trabalho de Beatriz.
Logo
após o almoço, Beatriz chegou em casa e tirou o seu uniforme. Olhando para seu
corpo, viu como havia envelhecido. Embora fosse mais velha que seu irmão, ele é
que parecia mais velho, pois a grande barba que ele cultivou nesses últimos
tempos lhe dava uma aparência mais envelhecida.
Andou
somente de calcinha do quarto até a cozinha onde no fogão a lenha esquentou uma
água para o seu banho. Enquanto esperava a água aquecer, foi novamente ao quarto
se olhar no espelho. Seu cabelo loiro caia até a altura do seu busto, cobrindo
completamente o seus seios. Algumas cicatrizes no corpo revelavam histórias de
luta e de sobrevivência.
Sendo
mulher num mundo em desordem social pareceu algo complicado, mas Beatriz sempre
dera uma boa surra num homem quando foi preciso. Já havia matado alguns para
sobreviver. Não se orgulhava disso, mas sabia que era necessário. Olhou novamente
para seu corpo que era refletido pelo espelho. Com seu um metro e sessenta,
ninguém fora da cidade diria que ela era a policial mais valente e mais forte das
redondezas.
Tomou
um banho rápido, vestiu uma velha calça de abrigo e um moletom simples. Achou-se
bonita. Sem andar com chinelo ou tênis, Beatriz andava somente de meia em
direção ao sofá de dois lugares que ocupava o centro da sala e sentou-se.
O
pequeno apartamento que ela ocupava na cidade, era um lar ideal para quem morasse
sozinha, embora ela recebesse muitas visitas agradáveis. Tomou um chá de camomila
e pegou um dos inúmeros livros que Fernando havia encontrado pela cidade.
Enquanto
lia as primeiras paginas, um toque forte na sua porta chamou sua atenção. Abrindo
a porta, ouviu seu pai falando muito rápido.
-Fernando
voltou. Vamos rápido. -
Antes de Beatriz responder alguma coisa, seu pai já andava pelo corredor em direção a escada. Em todo esse tempo, era a primeira vez que ela foi pega despreparada para algo. Estava sem seu uniforme.
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